O desafio imperial
Mauro Santayana
Se tivéssemos alguma dúvida sobre o desprezo que nos concedem os países europeus — e que é compartilhado no outro lado do Atlântico Norte — ela estaria resolvida pelo desaforo cometido contra o presidente da Bolívia, Evo Morales, tratado como um indesejável pela França, Espanha, Itália e Portugal. E tratado também com insolência pela Áustria, que lhe concedeu pouso de emergência, mas o reteve em Viena por 17 horas, antes de autorizar o voo de retorno a La Paz.
Não foi só o presidente da Bolívia o desfeiteado no episódio. Todos os latino-americanos, incluídos os cidadãos do México, foram atingidos pelo insulto. E não adiantam disfarces de esfarrapada diplomacia: para essa atitude contribuiu o sentimento racista que no fundo os anima. Somos mestiços — e isso basta.
O presidente Morales esteve em Moscou a fim de assistir a uma reunião mundial de países produtores de gás natural (a Rússia é o maior deles), e não tratou oficialmente do caso Snowden enquanto esteve na cidade. Seu avião, de limitada autonomia de voo, um jato Falcon, pousou e decolou de um aeroporto secundário, a dezenas de quilômetros do principal, em que, como se informa, se encontra abrigado o dissidente norte-americano. Não havia motivo de suspeitar-se que Morales o estivesse levando, como clandestino em sua aeronave de chefe de Estado, a fim de asilá-lo na Venezuela ou em Quito.
Não obstante isso, os norte-americanos solicitaram dos países europeus, situados na rota necessária e natural ao regresso de Morales, que lhe vedassem o espaço aéreo. A Convenção de Chicago, de 1944, que regula o tráfego aéreo (no caso de Morales, combinada com a Convenção de Viena sobre as relações diplomáticas) prevê que os aviões estrangeiros devem solicitar permissão de sobrevoo no território de qualquer nação, e que ela só pode ser negada em situações muito especiais, nenhuma delas poderia ser aventada pelos países que lhe negaram o direito de passagem.
O avião de Morales como o avião de Obama e de todos os chefes de Estado são militares, e voam com as bandeiras de suas respectivas forças aéreas, mas isso não os converte em caças ou bombardeios. No caso do presidente da Bolívia, trata-se de um jato executivo, com limitações de seus tanques de combustível. Negar-lhe sobrevoo e escalas técnicas, nesse caso, é expor os seus ocupantes aos riscos de um acidente — quase sempre fatal.
A reação dos países sul-americanos foi praticamente unânime. Trata-se de uma ofensa coletiva. Até mesmo homens que militam na direita, como o escritor Vargas Llosa, protestaram contra o comportamento de países como a França, e da própria Espanha — da qual o escritor é também cidadão — que se submeteram às ordens de Washington.
As lições são claras. A unidade da América do Sul deixa de ser um sonho. Não se trata de saber se ela é viável ou não — é, sim, um caso de extrema necessidade. Como disse Perón, ou nos unimos, ou nos escravizam.