Raízes do Brasil: no levante dos bisturis, ressoa o engenho colonial
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Doutor José |
Credite-se à elite brasileira façanhas anteriores dignas de figurar, como figuram, nos rankings da vergonha do nosso tempo.
A seleta inclui a resistência histórica à retificação de uma das piores estruturas de renda do planeta.
Ademais de levantes bélicos (32, 62, 64 etc) contra qualquer aroma de interferência num patrimônio de poder e riqueza acumulado por conhecidos métodos de apropriação.
O repertório ganha agora um destaque talvez inexcedível em seu simbolismo maculoso.
A rebelião dos médicos contra o povo.
Sim, os médicos, aos quais o senso comum associa a imagem de um aliado na luta apela vida, lutam hoje nas ruas do Brasil.
Contra a adesão de profissionais ao programa ‘Mais Médicos', que busca mitigar o atendimento onde ele inexiste.
A iniciativa federal tem uma dimensão estrutural e outra emergencial.
A estrutural incorpora as unidades de ensino à política de saúde pública. Prevê currículos estendidos com dois anos de serviços remunerados no SUS.
Prevê, ademais, investimentos que dotem os alvos emergenciais de estruturas dignas de atendimento.
A ação transitória requisitará contingentes médicos, cerca de 10 mil inicialmente, para servir em 705 municípios onde o atendimento inexiste.
Ou naqueles aquém da média nacional de 1,8 médico por mil habitantes ( na Inglaterra, pós Thatcher, diga-se, é de 2,7 por mil).
Enquadram-se neste caso outros 1.500 municípios.
O salário oferecido é de R$ 10 mil.
O programa recebeu cerca de 12 mil inscrições. Mas o governo teme a fraude.
A sublevação branca incluiria táticas ardilosas: uma corrente de inscrições falsas estaria em operação para inibir o concurso de médicos estrangeiros, sobre os quais os nacionais tem precedência.
Consumada a barragem, desistências em massa implodiriam o plano do governo no último dia de inscrição.
Desferir o golpe de morte com a manchete do fracasso estrondoso caberia à mídia, com larga experiência no labor antipopular e antinacional.
A engenharia molecular contra a população pobre do Brasil constrange.
Cintila no branco da mesquinhez a torpeza de uma elite empenhada em se dissociar do que pede solidariedade para existir: nação, democracia, cidadania.
O boicote ao ‘Mais Médicos’ não é um ponto fora da curva nessa trajetória.
Em dezembro de 2006, a coalizão demotucana vingou-se do povo que acabara de rejeita-la nas urnas.
Entre vivas de um júbilo constrangedor, derrubou-se a CPMF no Congresso.
As ruas não viram a rebelião branca cobrar o investimento em infraestrutura como requisito à boa prática médica, ao contrário de agora.
A CPMF era burlada na sua finalidade.
É verdade.
Por que, então, não se ergueu a corporação em defesa do projeto do governo de blindar a arrecadação, carimbando o dinheiro com exclusividade para a saúde?
O cinismo conservador é useiro em evocar a defesa do interesse nacional e social enquanto procede à demolição virulenta de projetos e governos assim engajados.
Encara-se o privilégio de classe como o perímetro da Nação. Aquela que conta.
O resto é sertão.
A boca do sertão, hoje, é tudo o que não pertence ao circuito estritamente privado.
O sertão social pode começar na esquina, sendo tão agreste ao saguão do elevador, quanto Aragarças o foi para os irmãos Villas Boas, nos anos 40, na expedição rumo ao Roncador.
Sergio Buarque de Holanda anteviu, em 1936, as raízes de um Brasil insulado em elites indiferentes ao destino coletivo.
O engenho era um Estado paralelo ao mundo colonial.
O fastígio macabro fundou a indiferença da casa-grande aos estalos, gritos e lamentos oriundos da senzala ao lado, metros à vezes, da sala de jantar.
Por que os tataranetos se abalariam com a senzala sucedânea das periferias conflagradas e a dos rincões inaudíveis?
Ninguém desfruta 388 anos de escravidão impunemente.
Os laços do engenho com o exterior ficaram marmorizados no DNA cultural das nossas elites: nenhum compromisso, exceto a pilhagem e a predação; usos e abusos para consumo e o enriquecimento.
A qualquer custo.
O Estado nascido nesse desvão tem duas possibilidades aos olhos das elites: servi-la como extensão de seus interesses ou encarnar o estorvo a ser abatido na figura de governantes intervencionistas.
A seta do tempo não se rompeu, infelizmente.
O particularismo enxerga exorbitância em tudo o que requisita espírito público.
Mesmo quando está em questão a vida.
Se a organização humanitária ‘Médicos Sem Fronteiras' tentasse atuar no Brasil, em ‘realidades que não podem ser negligenciadas', como evoca o projeto que ganhou o Nobel da Paz, em 1999, possivelmente seria retalhada pelo levante dos bisturis.
Jalecos patrulham as fronteiras do engenho corporativo, nas quais não cabem os pobres do Brasil.
Postado por Saul Leblon