Argentina: A conjuntura a 10 anos do kirchnerismo
Julio C. Gambina
Adital

Tradução: ADITAL
Ao cumprir uma década de governos kirchneristas, a política econômica é exercida a partir da intencionalidade de manter o nível de atividade ante a desaceleração econômica; a disputa com os empresários pelo controle dos preços; a captação de dólares para pagar a dívida e a fatura de combustíveis; juntamente com problemas estruturais que definem o modelo produtivo e de desenvolvimento.
Nesse sentido, destaca-se o incremento dos gastos familiares, que supõe uma aposta ao consumo, ante os ariscos investimentos privados. O crescimento se define entre o consumo, o investimento e o saldo positivo do comércio exterior; sendo o consumo uma das poucas variáveis que o governo ainda pode induzir.
Isso pode ser entendido como medida pré-eleitoral e ante um ato massivo de festejo por uma década de governos kirchneristas; porém, a realidade é que uma significativa massa de setores de menos recursos receberá uma quantidade de ingressos necessária para enfrentar o duro cotidiano da inflação.
A questão de fundo é que a economia argentina não cresce em bom ritmo e já não gera empregos; estes, inclusive, diminuem; e o índice de desemprego cresce, segundo medições do Indec. Por isso, aposta-se em políticas ativas que favoreçam o consumo popular, agredido pelo aumento de preços, que atingem especialmente aos mais pobres e de menores ingressos.
Os preços são um problema da conjuntura, que atinge aos menos favorecidos, e que o governo não inclui em seu diagnóstico (se considerarmos as medições do Indec). No entanto, a presidenta enfrentou os empresários, ressaltando que eles fixam os preços; não o governo. Ressaltou isso, simultaneamente ao anúncio do fim do acordo de preços sobre 500 produtos de consumo massivo. Vamos esperar os resultados.
Porém, a novidade foi o anúncio de controles com a militância de organizações sociais e políticas, os que cobriam uma atividade principalmente sobre o comércio. Em várias ocasiões, defendemos a necessidade de controle popular sobre os preços. O conflito social na Argentina contra empresários e, inclusive, contra o governo não favorece uma política de controle popular de preços. Não é o melhor clima para uma campanha que envolva aos trabalhadores. É um comentário válido, inclusive, para as correntes sindicais pró-governo, que disputam contra os empresários e, às vezes, contra o governo, nas convenções coletivas.
Questões estruturais em discussão
Porém, além da adesão ou não ao governo, existem problemas estruturais que afastam o movimento operário. Um exemplo: a Central de Trabalhadores Argentinos (CTA) não tem personalidade jurídica e, há mais de duas décadas, luta por sua legitimidade. Uma legitimidade que parece destinada a ser alcançada na luta e organização cotidiana, tal como se coloca em jogo, em 29 de maio, na comemoração ao Cordobazo e por um conjunto de reivindicações muito concretas, como o salário, as aposentadorias, as paritárias; porém, também, pela condenação ao pagamento da dívida externa pública e pelo reclamo por outro modelo produtivo, contra a sojização e a megamineração.
Fica claro que o aumento dos preços é um problema da conjuntura, e as medidas de acordo ou de controle militante são prova disso; porém, se insiste em reconhecer a mentira estatística. É um problema que requer solução no caminho reclamado pelos próprios trabalhadores do Indec, que demandam a normalização da entidade e, ao mesmo tempo, uma política de combate à inflação, controlando poucas e grandes empresas que fixam preço na Argentina.
Nesse marco, destaca-se a meia sanção por parte do Senado da Lei de Exteriorização de Dólares, ou ‘lavagem’, que, além dos efeitos ou das consequências econômicas, remete a problemas estruturais do capitalismo contemporâneo, não só local... É que o capitalismo atual se associa ao delito, à fuga de capitais e à trata de pessoas, à droga e a múltiplas formas de negócio, incluindo a corrupção. O dado substancial é que a batalha pelo dólar é uma disputa entre as classes dominantes. É um jogo no qual os ‘de baixo’ não entram. O governo necessita de dólares porque não os fabrica e suas fontes genuínas falham, seja pela tendência à diminuição do superávit comercial, pela entrada de divisas por investimentos esquivos, e pela ausência de crédito internacional barato. A urgência de obter dólares é para cumprir as exigências de uma dívida externa pública, que condiciona fortemente à economia local e engorda a fatura de combustíveis ante a crise energética local.
Como vemos, a conjuntura é exigente para o governo e evidencia as tensões que estão em jogo. Por um lado, existe a pressão de setores das classes dominantes para melhorar suas posições ante a situação de crise e a desaceleração econômica. Cada qual dá atenção ao seu jogo. Os empresários hegemônicos ganharam muito com a recuperação de 2003-2007 e, com a subida de preços, disputam a renda socialmente gerada. Agora, vão por mais e querem ‘exportar’ capitais pela via da livre circulação das divisas. É uma disputa pela obtenção dos dólares.
O problema é o ‘para que’ essas divisas são disputadas. O setor privado hegemônico pretende abaratar a fuga de capitais, sua maneira de sair do peso e poupar em ativos externos. O governo, para pagar a dívida e para importação de energia.
Porém, também existe a pressão dos ‘de baixo’, por salário e ingresso, por condições de trabalho e por direitos sociais mais amplos em educação ou saúde, entre outros.
O que está em discussão é a ordem econômica e dentro do que rege, quem a administra. Para ser mais claros, no balanço da década kirchnerista, deve-se ter em vista o objetivo que, em seu discurso de tomada de posse, há 10 anos, Néstor Kirchner se propôs alcançar. Ele afirmou que queria "reconstruir o capitalismo nacional”.
O caráter nacional pode ser discutido, especialmente pela ausência de uma burguesia de caráter nacional, ou seja, anti-imperialista; porém, não se deve negar que o capitalismo local superou os problemas econômicos (valorização dos capitais) da recessão de 1998-2002 com anos de crescimento a uma média de 8% entre 2003 e 2011, salvo 2009; porém, desde 2010, o curso da evolução econômica se apresenta errática e com tensões sociais que tentam ser contidas com política social massiva, favorecida por recursos fiscais provenientes da primarização exportadora do país; uma questão estrutural partilhada por toda a região latino-americana.
Agora, nessa recuperação, os que mais ganharam foram as transnacionais, não só as vinculadas à soja ou à megamineração; mas, as automotivas, os bancos, especialmente os transnacionais, na cabeça do ranking de rentabilidade nos últimos três anos.
O capitalismo local crescentemente se transnacionaliza, e não poderia ser de outra forma. O capitalismo é um regime mundial e a agenda advém da desejada normalização ante a crise. Entre outras manifestações da crise, está a energética; e o país expropriou parcialmente a YPF para deslocar o capital externo. A Repsol, no entanto, para assegurar a produção dos não convencionais, busca a Chevron, uma das grandes operadoras monopólicas do mercado mundial. Nesse caminho, envolve a Ancap, a estatal petroleira do Uruguai e a YPFB, a petroleira boliviana. Nossa pergunta é se essas empresas e outras da região não poderiam pensar em estratégias alternativas para um manejo soberano da energia, o que demandaria discutir o ‘para quê’ do petróleo, do gás e da energia na região. É um caminho complexo não só para a Chevron, demandada por povos originários do Equador por 19 bilhões de dólares, questão que, por enquanto, tramita na Justiça Argentina. Dizemos que é complexo porque já existem 5 municípios em nosso país que se pronunciaram contra a tecnologia da fratura hidráulica, o fraking, utilizada para extrair o "shale oil” ou o "shale gas”, ou hidrocarbonetos não convencionais. Novos "Famatimas” se anunciam no horizonte.
Quem administra o capitalismo? Pode-se pensar para além do capitalismo?
Essa é uma das discussões em voga, e cada um constitui seu sujeito.
Uns, com atos e militância, salários pagos pelo Estado e, inclusive, com mística disputada a partir de uma política de meios e com um relato que pretende apropriar-se e recuperar a epopeia dos anos 70.
Outros, com meios monopólicos e redes sociais que alimentam uma subjetividade mais própria dos anos 90, para reverter a inflexão estrutural que habilitou a rebelião de 2001.
Essa é a disputa mais visível, os que estão de um lado e os que estão do outro.
É a única disputa possível? Não. Existe uma massa considerável que avaliza certas atitudes de um lado e/ou do outro; porém, que transitam sem referência que possa aglutinar uma posição política alternativa.
Essa referência também esteve em disputa nesses anos, e, por variadas razões, essas expectativas foram frustradas, ficando vazio esse espaço político.
Um dos problemas é que alguns setores que pretenderam, ou pretendem mostrar-se como alternativa aos dois blocos principais que disputam o cenário político, não definem um rumo anticapitalista; e mais, se apresentam como prolixos administradores do capitalismo existente.
Não faz falta uma terceira opção para administrar o capitalismo realmente existente, nem sério, nem normal, aquele que pode ser construído. Necessita-se outro modelo produtivo e de desenvolvimento, uma sociedade que privilegie a satisfação das necessidades sociais mais sentidas, que aponte à desmercantilização da educação, da saúde, da energia; que alente a soberania alimentar, energética e financeira associada a outros países da região, não para subordinar a estratégia produtiva ao grande capital, mas para promover uma integração alternativa, antissistêmica, contra o capitalismo real associado ao delito, á militarização e ao empobrecimento das maiorias; em definitiva, a uma nova ordem local e mundial.
Em uma nova data de homenagem à revolução de maio, necessitamos reivindicar a revolução, ontem contra a coroa espanhola e, hoje, contra a dominação capitalista no país, na região e no mundo.
A melhor homenagem à revolução é continuar lutando pela revolução em nosso tempo, um processo integral, econômico, político, ideológico, cultural, civilizatório. É um caminho com muita história e muitas derrotas; porém, com expectativas pelo laboratório de mudanças na região nesse começo do século XXI. Não são esperanças vãs; são expectativas para desenvolver subjetividade por outro mundo possível, anticapitalista e pelo socialismo.