Mais ricos e mais ignorantes
Duas explicações
Sírio Possenti
Sírio Possenti
De vez em quando, especialmente aos sábados e domingos, alguém toca a campainha (os cachorros quase sempre percebem antes). Vou ver do que se trata. Frequentemente, pessoas – duas, três – me oferecem uma mensagem bíblica. Raramente, só em determinadas épocas, tentam me convencer a votar num partido ou num candidato.
Até hoje, ninguém tocou a campainha para pregar uma teoria linguística, genética ou física. Pode ser que apareça gente tentando combater o aquecimento global ou mudar minha alimentação. Se isso acontecer, aposto que a ênfase será ideológica, não científica.
Segundo Foucault, numa obra admirável, Ordem do discurso, uma das diferenças entre as doutrinas e as disciplinas é que estas tendem a se expandir; seus os enunciadores não perdem ocasião para pregá-las, para tentar disseminá-las. Vemos isso todos os dias, na TV e nas ruas: manifestações são doutrinárias, jogadores de futebol agradecem a Deus pelo gol marcado (tiram a camisa e deixam ver uma mensagem religiosa, dificilmente política). Às vezes, antes dos jogos, pedem paz ou se posicionam contra o racismo.
Creio que esta característica explica, em boa medida, as manifestações dos leitores na internet. Um exemplo: critico uma jornalista por ter dito uma bobagem sobre médicos cubanos, e os leitores, em vez de discutir minha análise (não chegou a ser uma, foi mais um desabafo irritado, sei disso muito bem) ou bronca, começam a discutir o regime cubano ou aspectos do contrato com a OPAS.
Minha sensação é que, qualquer que fosse o pretexto, havia já um discurso pronto, bom ou ruim, bobo ou relativamente informado, esperando ocasião para vir a furo. O tema da coluna era este? Pouco importa. Houve uma chance de falar bem ou mal de determinada posição, é o que importa. Eu poderia ter tratado do basebol cubano, das praias cubanas, de piadas sobre Cuba: o mesmo discurso viria à tona. Eram a hora e o lugar adequados? Ora, e isso importa?
Outra explicação para a emergência desses discursos fora de lugar vem da psicanálise: trata-se de associação. Basta que um significante ocorra para que, inconscientemente, um conjunto de associações seja feita. Conto um caso antigo: eu estava comentado sobre os curitibanos (eu estudava em Curitiba) com certa pessoa e ela desandou a falar de Curitibanos (uma cidade próxima de onde estávamos).
Freud defende que esta fala livre de monitoramente (diga tudo o que vem à cabeça, sem censura) pode ser um poderoso fator de cura, ou uma a explicação para atos falhos, esquecimentos etc.
Enfim, uma coluna como a da semana passada (era sobre crase, lembram?) pode muito bem ser uma excelente ilustração da tese de Foucault (boa para mencionar numa aula) e também para a de Freud.
Nos vestibulares, muitas dessas manifestações seriam tratadas como fuga total do tema. A nota seria zero. De fato, são bem piores do que a menção a uma sopa de miojo em redação sobre migração…
LENHA NA FOGUEIRA
Vou botar mais lenha na fogueira. Na semana passada, não foi só Micheline Borges que postou texto no mínimo problemático. Em Porto Alegre, uma estudante de comunicação (coincidência?) teve um pequeno incidente no trânsito. Postou que quem estava no carro envolvido era um casal de negros. E acrescentou, sem mais, que o carro “provavelmente era roubado”! Argumento? Só um: a cor da pele.
Em artigo no último ALIÁS (08/09/2014, p. E4), o sociólogo José de Souza Martins, comentando a tentativa de três jovens de enterrar um homem vivo em uma praia do Rio, rememora diversos casos similares, em especial o da morte do índio Galdino, em Brasília, em 1997. A explicação dos rapazes foi que pensavam que era um mendigo. O sociólogo comenta: “Isto é, em seu entender, se fosse mendigo, podia”.
Sua tese é que ainda continua viva, no país, uma velha divisão, segundo a qual há pessoas que valem menos, ou que não valem nada. Negros são os mais atingidos por esta “tese”, mas ela também afeta mulheres, gays, diferentes em geral.
O final do texto é assustador e verdadeiro. E tem tudo a ver com o que chamei, com menos classe do que Martins, de estupidez: “O que antes era atributo da minoria senhoril, agora se difunde com a ascensão social de gente que chega economicamente às camadas superiores da sociedade sem ter chegado às camadas superiores da cultura e da civilização. Em média, vamos nos tornando mais ricos e mais ignorantes, decaindo na escala da civilidade”.
Assino integralmente. O cara melhora um pouco sua renda, lê Veja, ou um dos blogs lá abrigados, e já se acha culto. E desanda a “analisar”, isto é, a repetir o pensamento único que leu lá.
Um bom exemplo foi uma intervenção de Jairo Severo (que não cansa de repetir que tudo deriva de uma tese de Gramsci). Não sei a troco de quê, comentou que eu deveria viver na Coreia do Norte, em Cuba ou na China, para sentir a força do Estado (é claro que ele não mencionou nenhuma ditadura de direita).
Ora, tivemos uma ditadura no Brasil recentemente. Eu peguei o final dela lecionando com espiões na sala, no Rio Grande do Sul. Acabávamos sabendo quem eram – às vezes pelo corte do cabelo.
Sabe-se que as ditaduras têm chefes, que, às vezes, não são bobos. Mas elas têm agentes que nem sempre são inteligentes. Podem entender errado, e lá se vai mais um desaparecido. A história da censura está cheia de casos como o do “agente” que queria saber onde andava esse tal de Sófocles ou daquele que queria censurar o Vermelho e o negro (a palavra “vermelho” funcionava para ele como “cubano” funcionou aqui na semana passada).
Minha sorte é nunca ter tido um espião tão beócio em sala de aula (meus espiões tinham que aprender a ler). Caso contrário, se eu falasse de preconceito de uma jornalista contra médicos cubanos por serem negros, correria o risco de que ele me denunciasse ao seu coronel por ter feito a defesa do regime castrista…