quinta-feira, 28 de novembro de 2013

VENEZUELA - A NECESSIDADE DE UMA REVOLUÇÃO NA REVOLUÇÃO.



Marcelo Colussi
Adital

Quando se quer fazer uma mudança social, deve ter claro que modelo utilizará;
porque é impossível administrar o modelo capitalista somente com espírito patriótico
e com honestidade. O modelo capitalista acaba te engolindo. É como o diabo.
Não se pode rezar missa nas cavernas do diabo, porque ele te engole.
Nicolás Maduro, 2005.
Segundo as Contas Nacionais, explicitadas pelo Banco Central da Venezuela (BCV),
o PIB privado (porcentagem da atividade econômica do país em mãos diretas do empresariado)
corresponde a 71% do total (em 2010). Em 1999, o PIB privado era de 68%.
Isto é, apesar das nacionalizações, o PIB continua sendo majoritariamente privado,
e, comparado com países que nada têm a ver com o comunismo –como a Suécia, a França e a Itália,
onde o PIB é majoritariamente público (estatal)-, o Estado venezuelano não tem em suas mãos
(salvo o petróleo) nenhum item significativo da economia.
Manuel Sutherland, 2013.
Eu não sou um libertador. Os libertadores não existem. Os povos libertam-se sozinhos.
Ernesto Che Guevara
Tradução: ADITAL
Anos atrás, em meio à maré neoliberal que se expandia triunfante por todo o mundo, festejando a extinção do campo socialista europeu, apareceu a figura de Hugo Chávez. Com todas as limitações do caso e os reparos que podem ser feitos a partir da esquerda, isso significou uma enorme quota de esperança. Após a longa noite representada pelas ditaduras sangrentas, que cobriram toda a América Latina de luto e os planos do capitalismo selvagem que vieram a seguir, o aparecimento desse militar nacionalista, confusamente anti-imperialista, com um discurso anticorrupção e com o oferecimento de um novo socialismo, prometia muito.


Desde sua chegada ao poder na Venezuela, em 1998, muito água correu debaixo da ponte. Talvez é prematuro fazer um balanço do significado histórico de sua atuação política de uma década e meia: para a direita –vernácula e internacional- foi um demônio, um "castro-comunista”, que voltou a atiçar a por ela anatematizada e pretensamente desaparecida luta de classes. Para a esquerda, sua obra nunca passou de uma prática reformista e populista, alimentada mais do que generosamente por um capitalismo rentista baseado na monoprodução petrolífera, sem perspectiva de transformação revolucionária.
O certo é que o cenário político venezuelano, mas também o latino-americano e, inclusive, o internacional, viram-se tocados pela influência desse carismático líder e pelo sempre impreciso –porém, ao mesmo tempo, promissor e carregado de esperança- "socialismo do século XXI”.
No início de 2013, Hugo Chávez morreu na glória. Sua imagem em boa medida já passou a ser mítica; uma verdadeira lenda. Injuriado pela direita; amado e endeusado por uma ampla maioria do povo venezuelano; visto com simpatia pela esquerda, sempre esperando sua radicalização; não chegou a sofrer o desgaste do exercício do poder. Sua morte, um verdadeiro fenômeno midiático de alcance mundial, o colocou na posição de comandante heroico; e sua ausência agiganta sua figura mais do que sua presença.
Sem dúvida, os quase 15 anos em que esteve à frente desse singular processo por ele denominado Revolução Bolivariana (uma experiência de "socialismo rentista”, cheio de contradições, mas, também, de esperanças) não são fáceis de analisar. Qual o resultado de tudo isso? Luzes e sombras. Não foi uma revolução socialista, pelo menos como, historicamente foi concebida. Claramente, foi um processo que não extrapolou os marcos capitalistas; porém, ao mesmo tempo, gerou uma série de mudanças na distribuição da riqueza nacional que nenhum governo anterior –todos capitalistas- havia conseguido realizar. A situação geral das classes populares venezuelanas –por certo a maioria da população- melhorou substancialmente.
Vendo-se em perspectiva política, o processo tinha limites muito precisos: não se apresentou como uma transformação radical das condições estruturais, da propriedade dos meios de produção; não podia passar de uma proposta capitalista com rosto humano. Em tempos de capitalismo sem piedade, que correm desde a queda do Muro de Berlim, essa proposta tem sabor de avanço social. Visto com objetividade, não passou de reformismo. Porém, as promessas de socialismo, ainda mais em meio à onda neoliberal que varreu o mundo, despertaram esperanças genuínas.
O tempo foi passando, com um Chávez cuja enorme habilidade política podia tentar reunir posições antitéticas com base em seu carisma monumental; porém, a revolução socialista, o preconizado novo "socialismo do século XXI” nunca foi aprofundado. Ou, se tentou fazê-lo (controle operário de algumas fábricas recuperadas; organização popular a partir da base), os marcos do Estado capitalista que continuaram primando não permitiram sua radicalização. Os planos redistributivos implementados pela administração bolivariana significaram um avanço, pois os índices básicos de atenção à população melhoraram. Não restam dúvidas de que a renda petrolífera chegou a muito mais gente do que com qualquer governo anterior. E isso representa um passo importante. Porém, só isso não caracteriza o socialismo.
Não se pode deixar de reconhecer que, após anos de capitalismo selvagem, que trouxe retrocesso às conquistas sociais históricas (as 8 horas de trabalho, a sindicalização, as leis de proteção ao trabalhador, um Estado de Bem Estar para as grandes maiorias), o fato de apresentar-se com talante popular a partir da administração pública já pode ter um sabor "socializador”. É claro que para a direita representou uma moléstia (talvez não representou um perigo) o fato de ter um presidente díscolo que falava novamente de "anti-imperialismo” e de "socialismo”, termos que haviam saído de circulação após a extinção do campo socialista e com o final da Guerra Fria. Com Chávez, houve tentativas de caminhar rumo ao socialismo; houve avanços interessantes. De todo modo, nem a grande propriedade foi tocada e nem a esperança de poder popular efetivo se ,materializaram. Foi mais barulho do que fatos.
Porém, houve mudanças. E muitas! Por isso, a direita protesta tanto. É certo que os últimos recursos do sistema; porém, em um mundo neoliberal pensar que os historicamente excluídos possam ter melhorias já é um sacrilégio para o pensamento conservador. E na Venezuela bolivariana, com Chávez à cabeça, houve melhorias significativas. De fato, o nível geral de pobreza foi reduzido ostensivamente de 70,8%, em 1996, para 20%, em 2012; foi a maior redução na América Latina depois do Equador e uma das maiores no mundo, segundo reconheceu a Cepal. Os avanços sociais da Revolução Bolivariana estão à vista.(...)
O processo bolivariano está empantanado há tempos. É certo que com o desaparecimento do comandante, a continuidade da revolução em curso tornou-se mais difícil. Isso não é culpa do atual mandatário, Nicolás Maduro. Pensar que os problemas sofridos atualmente no rico e esperançador processo aberto anos atrás deve-se à debilidade ou imperícia do novo presidente seria um grande desatino. Ou melhor, seria perigosíssimo! Pois isso reduziria uma revolução socialista a uma administração política, ao carisma de quem está sentado na cadeira presidencial. E a revolução socialista é infinitamente mais do que isso. Ou seja, não é isso! Porém, justamente os problemas atuais sofridos pelo "chavismo” devem levar a uma profunda, necessária, imprescindível autocrítica. Por que "chavismo”? Por que esse culto à personalidade? E o verdadeiro poder popular? Que socialismo está sendo construído?
Com as últimas eleições presidenciais, de abril 2013, após a morte de Hugo Chávez, abriram-se três possíveis cenários: 1) triunfo da direita visceral, com Henrique Capriles Radonski (com um presumível retrocesso de todos os avanços da revolução); 2) triunfo do PSUV, com Maduro à cabeça e aprofundamento da construção do socialismo (ansiado pela esquerda; porém, sem dúvidas, o mais difícil de se materializar); e 3) triunfo do "herdeiro” de Chávez, com crescente controle do processo político pela direita bolivariana, a chamada "boliburguesia” enquistada no aparelho estatal (burocratas novos ricos que falam com uma linguagem chavista, mas com clara ideologia conservadora). Lamentavelmente para a causa popular, o terceiro cenário parece ser o que vai se dando.
Há poucos anos atrás, Nicolás Maduro, sendo presidente da Assembleia Nacional, dizia: "O que nós denominamos ‘parlamentarismo social na rua’ é a liderança social do que agora se vive na Venezuela. É converter a Assembleia Nacional –que é o órgão parlamentar do país- em um verdadeiro poder popular. Ou seja: que não seja simplesmente um Congresso de elites, onde estas decidem pelo povo, onde substituem a vontade popular, pensam e decidem pelo povo; porém, acabam articulando-se com as elites do poder econômico –nacional e internacional- para continuar mantendo o status quoem matéria das leis fundamentais que regem a economia e a vida social da nação. (...) O parlamentarismo de rua é um salto revolucionário em relação ao parlamentarismo tradicional burguês baseado na democracia representativa. (...) O que pode substituir a velha democracia colonial representativa e desgastada dos partidos políticos que existe no continente? A democracia popular, uma democracia revolucionária, participativa e protagônica, onde o povo, o cidadão seja o principal ator”.
É claro que escutar isso abre enormes esperanças para o setor popular, para a possibilidade de uma mudança revolucionária real. O que aconteceu em seguida, o que está acontecendo, que sinistro personagem como José Sánchez Montiel, mais conhecido como Mazuco, assume como deputado nessa mesma Assembleia Nacional ante o olhar atônito do povo, após uma óbvia decisão não consultada e com arranjos por ‘debaixo dos panos’ com a direita recalcitrante? Mazuco, é bom não esquecer, foi ao Estado Zulia –a terra do agora prófugo Manuel Rosales, ultradireitista apoiado pela CIA-, o melhor aluno de Henry López Sisco no crime e no delito, o maior policial assassino que já viveu na Venezuela, que se gabava de ter assassinado pessoalmente mais de 200 revolucionários e lutadores populares nos anos que a Disip foi ativada. Mazuco, não esquecer nunca: um convicto criminoso acusado das piores violações ao sindicato como homicida, ladrão e narcotraficante: como é que agora passa a ser deputado? E o poder popular, companheiros? E o "parlamento de rua”?
E como entender a detenção do nacionalista vasco Asier Guridi Zaloña, que vivia há anos no país, no passado 1º se setembro, pelas mãos do Serviço Bolivariano de Inteligência Nacional (Sebin), com a colaboração da Polícia espanhola e da Polícia Judicial francesa, que operaram no território nacional com o beneplácito do governo, violando a soberania venezuelana? Era necessária essa jogada política para congraçar-se com alguém? Qual a contribuição de tudo isso à construção do socialismo?
Nessa ordem de ideias que nos devem levar à imprescindível e crucial autocrítica: como entender o enorme perigo eleitoral que se realizará no dia 8 de dezembro, nas futuras eleições municipais, onde muitos pré-candidatos bolivarianos a prefeito decidiram lançar-se por sua conta depois que foram omitidas as eleições internas e os candidatos foram decididos de maneira arbitrária pela hierarquia do Partido Socialista Unido da Venezuela (PSUV)? Que socialismo novo está sendo construído? Que modelo de socialismo está em jogo?
Poderíamos dizer que esses são aspectos pontuais, não relevantes, não definidores de um processo mais amplo que é a Revolução Bolivariana em seu conjunto. Porém, não se deve esquecer que na última eleição presidencial, com toda a maquinaria eleitoral do PSUV e a apelação monotemática à figura do extinto comandante, o candidato bolivariano venceu com diferença mínima. É certo que a direita atua, e muito, para conspirar contra o processo em curso. Porém, sem a autocrítica mínima e indispensável, não pode haver socialismo. Como disse Maduro algum tempo atrás, sem "uma democracia popular, uma democracia revolucionária, participativa e protagônica, onde o povo, o cidadão seja o ator principal”, inexoravelmente, não pode haver socialismo. É por isso que aparecem esses três epígrafes abrindo a presente reflexão: não se pode estar com deus e com o diabo ao mesmo tempo. Ou se é socialista ou capitalista. Mesmo que seja lapidar e possa passar por esquemático, é isso mesmo. Capitalismo com rosto humano não deixa de ser, antes de tudo, capitalismo. Se existe um processo real de transformação, não se pode entronizar a figura de ninguém. Não devemos esquecer disso, pois está mais próximo da religião do que do ideal socialista. Sem negar a importância dos grandes condutores da história –e Chávez, sem dúvidas, o foi- é hora de abrir-se a saudáveis autocríticas (cf. a citação do Che Guevara acima).
É verdade que a direita arremete ferozmente contra o processo bolivariano. Porém, cuidado! Essa mesma direita tradicional está fazendo seu grande festim econômico e o governo revolucionário deixa passar. Ou é cúmplice? Como entender o crescimento sem barreiras da especulação parasitária e do capital financeiro?
Não cabem dúvidas que muitas das dificuldades econômicas atuais foram desencadeadas por processos de desestabilização arteiramente concebidos. O desabastecimento crônico de produtos de primeira necessidade (papel higiênico como símbolo infame dessa situação), um dólar paralelo 6 ou 7 vezes mais caro do que o dólar oficial, ou um processo inflacionário que não para, fazem com que o panorama atual se complique. Porém, não se deve deixar de levar em consideração que muitas medidas do governo não contribuem para a consolidação de mudanças revolucionárias: as impopulares desvalorizações (que sempre, no fundamental, são pagas pelos pobres); a sempre onipresente dependência do petróleo (pode-se falar seriamente de um "socialismo petroleiro-rentista”, ou isso é um perigoso desatino?); o escasso desenvolvimento industrial nacional que força a importar cerca de 50% dos alimentos, ao qual se soma, não como males menores, mas, talvez, com maior força na percepção das grandes massas populares, como uma generalizada e pesada corrupção de muitos quadros bolivarianos: são um caminho ao socialismo? Quais são os antídotos usados contra tudo isso?
Decretar um "Natal antecipado” a partir de 1º de novembro (fomento do desenfreado consumismo natalino?; festejo religioso em um governo que deveria ser, no mínimo, laico?), ou o lançamento de um questionável Vice-Ministro da Suprema Felicidade (que serviu para burla por parte da direita); propiciar a entrada de um piloto venezuelano na Fórmula I Internacional, são medidas socialistas? Isso nos faz recordar a proposta, alguns anos atrás, de uma governadora chavista que idealizou uma Missão específica para dotar de implantes de silicone às mulheres de recursos escassos, moção que não prosperou, mas que deixa ver o talante em jogo: vamos rumo ao socialismo com pilotos de corrida, peitos siliconados e festejos de Natal?
Ninguém disse que construir um novo modelo de sociedade fosse fácil. Tomar o poder –se quisermos: tomar a casa presidencial- é extremamente difícil; porém, bem ou mal (mesmo com uma escassa margem de votos), isso aconteceu na Venezuela. Porém, ter a estrutura do Estado capitalista não é, nem de perto, ter o poder. Pois bem, aqui começam os problemas. Mudar uma sociedade, transformar para fazer surgir algo novo é infinitamente mais do que administrar uma casa de governo. Em grande medida, é revolucionar as cabeças, os modos de pensar, as atitudes seculares. "É mais fácil desintegrar um átomo do que um preconceito”, disse Einstein, com muita razão.
O que está acontecendo na Venezuela, mesmo com todos os erros e os problemas próprios do processo em marcha, continua sendo uma esperança aberta. Por isso, mesmo os que continuamos apostando nas transformações reais e não baixamos a cabeça, com ou sem Chávez na direção, continuamos vendo nisso uma janela de oportunidades. E, justamente por isso, porque vemos que se esse processo cada vez mais está sequestrado por um pensamento reformista, socialdemocrata e burocrático, é que nos alarmamos.
Felizmente, há setores significativos dentro do aparelho do Estado, dentro do PSUV, entre os cidadãos, na rua, nas comunidades, na militância comprometida, que veem esses perigos. Esse texto, feito por um não venezuelano e de fora do país, talvez fique no esquecimento, sem nenhuma consequência prática real. Porém, não existe pior luta do que aquela que não se trava. É por isso que apoio, chamo e me somo às propostas de aprofundamento real da Revolução Bolivariana. Isso implica em ir frontalmente contra a direita endógena que se apropriou do processo; denunciá-la; isolá-la; devolver a vitalidade perdida à revolução; chamar à mobilização genuína das massas venezuelanas; recuperar a vitalidade transformadora que foi sendo abafada por medidas populistas e reformistas. "Suprema felicidade”, ou "Natal antecipado”, talvez não, por ambíguas, que, talvez, causam o riso ou são questionáveis. Mas, modestamente: poder popular; controle operário e camponês da produção; defesa real da revolução com milícias populares. Essa é a única maneira de manter viva a esperança. O restante tem seus dias contados.